Brasil

‘Não existe uma epidemia de drogas no Brasil’, afirma especialista

Psiquiatra diz que nova Política Nacional de Drogas não se baseia em dados científicos ao estimular a abstinência como tratamento de dependência química
Mestre em Psicologia e Redução de Danos, a psiquiatra Nicola Worcman afirma: "Não há uma epidemia de drogas no Brasil" Foto: Acervo Pessoal
Mestre em Psicologia e Redução de Danos, a psiquiatra Nicola Worcman afirma: "Não há uma epidemia de drogas no Brasil" Foto: Acervo Pessoal

RIO - Psiquiatra especializada no tratamento de dependentes de álcool e drogas , Nicola Worcman observa com olhar crítico a mudança de foco da Política Nacional de Drogas — da chamada redução de danos para o modelo exclusivo da abstinência , como consta do decreto que definiu o novo rumo, assinado no início deste mês.

Mestre em Psicologia e Redução de Danos pela Universidade Paris 7, na França, Worcman atuou no sistema de saúde pública do Rio de Janeiro até o ano passado, quando se mudou para os EUA, onde é pesquisadora de políticas públicas de drogas na Virginia Commonwealth University.

Em entrevista ao GLOBO, ela procura sintetizar o que são a redução de danos e a abstinência . E propõe que um modelo não seja contraposto ao outro, mas que haja uma dialética entre ambos, para assim entender os diversos níveis de complexidade no tratamento de dependentes químicos .

O que representa a mudança do foco na redução de danos para a abstinência?

Essa mudança vai criar barreiras para os usuários de drogas terem acesso ao tratamento. E isso, a médio e longo prazos, reduzirá o número de pessoas dispostas a encarar o processo de um tratamento de dependência de uso de drogas.

Mas por que a adoção exclusiva do modelo de abstinência reduz o acesso ao tratamento?

A redução de danos é um conjunto de estratégias que tem como principal objetivo garantir a saúde do indivíduo que usa drogas , independentemente de ele conseguir ou querer parar de usar a substância. Mesmo em vigência de uso, o sujeito pode estar em tratamento. A abstinência é um dos objetivos da redução de danos , está incluída nela. É um erro dizer que uma se opõe à outra. Por isso a redução de danos é uma política de saúde pública mais eficaz, pois aumenta a acessibilidade ao tratamento. O foco único em abstinência reduz o acesso ao tratamento. Na América Latina, um em cada 11 dependentes químicos procuram tratamento; no mundo, um em cada seis. Se a gente propõe um tratamento que exige muito do sujeito, a tendência é esse buraco ir mais fundo.

A redução de danos é considerada mais eficaz?

Do ponto de vista científico, o modelo tem eficácia comprovada. E, além disso, custo menor. Penso aqui nos custos anuais com a chamada “ guerra às drogas ” mundo afora, que englobam não só modelos de abstinência , mas também políticas pautadas na repressão do consumo, venda, produção e repressão ao tráfico. Esse custo anual é de cerca de US$ 100 bilhões. O mais recente relatório bianual do Harm Reduction International traz estimativa comparando o impacto econômico da “ guerra às drogas ” com o modelo da redução de danos. Se em dez anos o mundo investisse 2,5% desses US$ 100 bilhões em redução de danos , haveria queda de 65% nas mortes decorrentes de HIV e de 78% em casos novos de HIV no mundo. A abstinência também tem resultados positivos, mas atingem parcela menor de usuários. Não significa que a abstinência por si só não dê certo, mas é um modelo de alta exigência.

O que significa, na prática, “alta exigência”?

Que o usuário precisa parar de usar a substância para permanecer em tratamento . Mas o que se sabe é que a maioria das pessoas não está pronta para isso. E a redução de danos oferece outras formas de tratamento, de menor exigência. Por exemplo, a distribuição de camisinhas para evitar doenças sexualmente transmissíveis, ou oficinas em família, para que o indivíduo se sinta inserido no círculo familiar. A redução, é verdade, também prevê alta exigência, como participar de um tratamento médico ou ficar sem a substância. Os países que têm mais sucesso no controle do uso de drogas têm uma rede que vai de baixa complexidade até alta complexidade, e o que o Brasil está fazendo é focar sua política pública num modelo exclusivamente de alta complexidade. Estamos na contramão dos países que tiveram sucesso na redução do uso de substâncias.

Se o atual modelo era mais eficaz, por que mudar para a abstinência?

Houve uma guinada ideológica em relação à forma como o governo entende o uso de drogas. E essa guinada, cientificamente, carece de precisão. Políticas públicas para uso de álcool e drogas devem ser pautadas por dados científicos. O que a literatura médica mostra é que a redução de danos é eficaz e que a abstinência exclusivamente não produz resultados positivos a médio e longo prazos. Políticas públicas precisam atender a uma gama ampla de complexidade, pensando na maioria. E, cientificamente, o que se sabe é que a maioria não consegue permanecer abstinente por muito tempo. Entre 60% e 90% dos dependentes de álcool não conseguem ficar abstinentes. E aí? O que fazemos com essas pessoas? No último relatório da ONU (de 2015) vimos que 247 milhões de pessoas usaram drogas ilícitas no mundo. Destas, 28 milhões sofrem de transtornos em decorrência do uso de droga. É uma minoria se comparado ao total.

O decreto cita dado da ONU registrando o aumento de 60% em mortes causadas por drogas no mundo...

Isso é verdade. Mas o Brasil não vive a mesma realidade de outros países. Nos EUA, há os opioides, não é o caso do Brasil, com perfil intrinsecamente ligado às desigualdades sociais. O acesso a opioides ilegais, como a heroína, é difícil no Brasil, são drogas mais caras quando comparadas ao crack, uma droga de baixo custo e efeito rápido. As maiores causas de morte relacionadas ao crack são as violentas. Não é como o opioide, que mata por overdose. A internação involuntária e o isolamento social em regimes de confinamento para usuários de crack é uma medida ineficaz do ponto de vista científico, mas vem sendo estimulada pela nova política de drogas do governo, e não o fornecimento de moradia, que foi eficaz no Canadá e nos EUA.

Mas o ministro da Cidadania, Osmar Terra, diz que o Brasil vive uma epidemia de drogas.

Isso é uma presunção do ministro. Ele não usou dados científicos, como muitos países da América Latina e os EUA fazem. Lá, as políticas são alteradas com base em relatórios nacionais de uso de drogas.

O Brasil não tem relatórios sobre uso de drogas?

Nosso último é de 2005. Isso é um absurdo, pois estamos fazendo políticas públicas às cegas. O censo feito pela Fiocruz e concluído em 2018 comprova justamente que não existe uma epidemia de drogas no país (trata-se do 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, feito sob encomenda do Executivo e cuja divulgação foi vetada pelo atual governo). O que esse censo confirma, a propósito, é que a droga mais nociva no Brasil ainda é o álcool. É claro que o panorama mundial tem que ser levado em conta, mas isso não pode pautar uma política pública no Brasil, que tem outras especificidades.