Saúde

Programa social faz usuários reduzirem consumo de crack em São Paulo

Pesquisa diz que 65% dos beneficiários passaram a consumir menos droga

Depois de 15 anos na rua, Ronaldo Gonçalves, de 38 anos, agora vive e trabalha em um dos hotéis que fazem parte da iniciativa da prefeitura
Foto: MARCOS ALVES
Depois de 15 anos na rua, Ronaldo Gonçalves, de 38 anos, agora vive e trabalha em um dos hotéis que fazem parte da iniciativa da prefeitura Foto: MARCOS ALVES

SÃO PAULO — “O cabelo dá um trabalhão, mas eu gosto”, conta Ronaldo Gonçalves, de 38 anos, orgulhoso dos dreads volumosos. No peito, ele ostenta o crachá que o identifica como um dos 467 beneficiários do De Braços Abertos, programa da prefeitura de São Paulo que oferece um quarto de hotel, três refeições diárias e trabalho de varrição de vias para usuários de crack. Depois de 15 anos na rua, Gonçalves recuperou o peso, o viço da pele, o prazer de ter uma cama quente para dormir todas as noites. E conta ter reduzido o consumo de pedras, que antes lhe tomava a maior parte dos dias e das noites.

Embora não exija abstinência dos usuários, o programa tem sido efetivo em reduzir o uso de crack, como mostra uma pesquisa inédita da Open Society Foundations, baseada em Nova York, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos da Unicamp. O relatório, que será lançado hoje, revela que 65% das pessoas ouvidas disseram ter diminuído ou interrompido o consumo.

— É claro que eu sinto vontade da droga, mas estou ocupada, trabalho oito horas por dia e reorganizei minha rotina. Se antes eu fumava entre dez e 20 pedras por dia, agora uso três ou quatro só no fim de semana — diz a travesti Brenda Braccio, de 32 anos, que, além do trabalho como gari, foi contratada como faxineira no hotel onde mora.

EXPERIÊNCIA NOVA NO MUNDO

Segundo Brenda, o programa interrompeu um cotidiano que poderia levá-la à morte — ela estava 11 quilos abaixo do peso, se prostituía, não se alimentava. — Fumei até a minha quitinete.

Hoje, ela junta dinheiro para pagar a passagem de avião que a levará a Fortaleza (CE), onde vive a mãe, com quem retomou recentemente o contato.

O resultado da pesquisa revela que uma política pública baseada em redução de danos — quando a prioridade não é interromper totalmente o consumo das drogas, mas promover o autocuidado — funciona para o tratamento de usuários do crack. A experiência é nova no Brasil e no mundo.

— O resultado afasta a lenda de que o uso de crack é incontrolável e mostra que os usuários fazem escolhas. São cidadãos, não animais — diz o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, um dos autores do estudo.

A pesquisa também traça um inédito perfil dos que gravitam na cracolândia. A maioria tem baixa escolaridade, já esteve presa alguma vez ou cumpriu medida socioeducativa quando era menor de idade, é negra ou parda, já passou por algum tipo de tratamento para drogas antes do De Braços Abertos e tem filhos. A frequência de doenças como Aids e tuberculose é mais alta entre eles do na população em geral. Quase metade tem sintomas de depressão e ansiedade.

— Eles vêm de grupos que já são mais vulneráveis. Seu único contato com o Estado até então é frequentemente com o aparato repressivo e criminal — afirma a antropóloga Taniele Rui, autora do estudo.

A pesquisa aponta ainda limites do De Braços Abertos, como a pouca opção de ocupações, a precariedade de alguns hotéis, com fiação elétrica exposta e pouca higiene, e a localização do alojamentos, no entorno do fluxo de venda e consumo das pedras. Questionada, a prefeitura de São Paulo afirmou que as avaliações feitas pela própria gestão apontam redução maior do uso que a mostrada pela pesquisa da Open Society Foundations. Em nota, informou que 88% dos beneficiários dizem ter diminuído o consumo e que “antes do programa, o uso de crack por pessoa era de, em média, 42 pedras por semana, e agora é de 17 pedras”.